AOS SIMÃODIENSES:
À luz dos candeeiros
-Vão botar poste pra trazer luz de Paulo Afonso!
- Desconjuro... luz elétrica pra quê? Perturbar o xiriri das cigarras quando de tardinha anunciam chuva nas palmeiras da praça? Revelar segredos nos oitões, apagar estrelas?
Carecia não, a cidade de Simão Dias convivia muito bem com os seus tons noturnos onde brilhavam elegâncias antigas, um certo ar de cidade medieval, o gosto de fazer com as mãos a curvatura dos dias, a vida simples vivida entre os benefícios do sol e as mesuras da noite.
Um velho motor zuadento bufava de vez em quando na praça do Hospital e sua proficiência em bufos-bufos, acendia aqui ali um fifó elétrico nos postes até as nove horas da noite, quando piscava duas vezes e logo nos devolvia à bendita escuridão.
Era o que bastava. De noite, Simão Dias acendia suas Pletomax nas casas vetustas, ou era mesmo no candeeiro - doce gomo de luz alumiando as calçadas - que a cidade se via. Noites gostosas de escuridão e frio. Terá sido daí, do querosene inalado, do penumbrento lusco-fusco aguçando o tino que nos tornamos únicos? Ou terá sido a elegância dos capotes, das lanternas de pilha recortando as ruas - cada indivíduo um farol de holandesas mesuras - do boa-noite indistinto nos contrafortes dos becos, tão respeitosos quanto desconfiados, que nos fizeram especiais, assim simãodienses?
Depois do cuscuz ralado com manteiga sublime, noitinha, eu visitava o Padre Mário Reis. Padre macho, diga-se logo. Morava na praça a trinta metros da minha casa, mas o ritual de visitá-lo exigia lanterna, capa nos ombros e circunspeção. Era somente lá, numa vitrola a manivela, que eu podia ouvir a Cavaleria Rusticana, os doirados pomos de Chopin, o descabaço wagneriano em tímpanos heróicos, o doce Liszt, coitado, roendo a danação dos altares.
Cadeiras confortáveis, semibreves e silêncio. O Padre só dizia: "Bethoven, Sinfonia Inacabada'". E nada mais havia que falar.
Quando não, na Rua do Coité, o bar do sinuca me fazia moleque. Na bola sete, depois de uma Jurubeba com mel, todo mundo botava dez'tões. Era um prazer derrubar cabra frouxo no cataplá das caçapas. Na escolha certa dos tacos o campeão ranhendo o giz em grave silêncio. Grave como um Aquiles atento ao fragor da batalha - o pano verde, enseadas de Tróia - ele punha sobre a cruzeta o taco maior e pá! A bola branca saia exata inventando geometrias, trisca aqui, tabela boba fazendo que não, depois cumpria o toque sutil: bola preta, cataplá na caçapa.
A luz chegou depois de décadas de desesperança. Chegou com pompas de papel crepom decorando os postes, no estardalhaço dos dobrados. Lá estava a orgulhosa Lira Sant'Ana toda engomada, com seus contrabaixos encantando os meninos. O regente, Seu Mestre Raimundo, metido em terno azul de linho belga, esfogueava. Era desses brancos sardentos de bochechas róseas, cabelo de milho, dedinhos miúdos. A gravata grená, torta clave de ré apertando o gogó, inda hoje me fascina. Como podia aquele pequeno homem organizar tanto som, de tal modo encantador? É que Seu Raimundo era belo, regendo o patriotismo da cidade, qual cisne branco em noite de luz elétrica.
Mas não foi muito boa aquela luz de Paulo Afonso. Quando a festa acabou veio a praga dos baratões. Cada uma meu irmão! Invadiram a cidade. Não se tomava fresca na calçada, não se abria um baú, não se dormia sem uma barata nos lençóis. Praga da peste! Elas chegavam por volta das seis, ritualísticas em volta das lâmpadas, depois davam a louca no mundo.
Tivemos grandes problemas.
Um eu conto: lá vem Dona Candhão, visinha minha na Praça da Matriz, espavorida a xingar meio mundo de cão. Um intrépido baratão achara por bem se alojar no seu imenso califon, o danado arranhando luxúrias no seu túrgido e imaculado peitão. Dona Candhão gritava: "A fia do cabrunco tá roendo minhas partes!" E chocalhava aflita os berloques de ouro 14 (pra conta de três), pendurados na cordilheira dos seios.
Eu fui lá e os tirei iluminado pela luz de Paulo Afonso.
Amaral Cavalcante
À luz dos candeeiros
-Vão botar poste pra trazer luz de Paulo Afonso!
- Desconjuro... luz elétrica pra quê? Perturbar o xiriri das cigarras quando de tardinha anunciam chuva nas palmeiras da praça? Revelar segredos nos oitões, apagar estrelas?
Carecia não, a cidade de Simão Dias convivia muito bem com os seus tons noturnos onde brilhavam elegâncias antigas, um certo ar de cidade medieval, o gosto de fazer com as mãos a curvatura dos dias, a vida simples vivida entre os benefícios do sol e as mesuras da noite.
Um velho motor zuadento bufava de vez em quando na praça do Hospital e sua proficiência em bufos-bufos, acendia aqui ali um fifó elétrico nos postes até as nove horas da noite, quando piscava duas vezes e logo nos devolvia à bendita escuridão.
Era o que bastava. De noite, Simão Dias acendia suas Pletomax nas casas vetustas, ou era mesmo no candeeiro - doce gomo de luz alumiando as calçadas - que a cidade se via. Noites gostosas de escuridão e frio. Terá sido daí, do querosene inalado, do penumbrento lusco-fusco aguçando o tino que nos tornamos únicos? Ou terá sido a elegância dos capotes, das lanternas de pilha recortando as ruas - cada indivíduo um farol de holandesas mesuras - do boa-noite indistinto nos contrafortes dos becos, tão respeitosos quanto desconfiados, que nos fizeram especiais, assim simãodienses?
Depois do cuscuz ralado com manteiga sublime, noitinha, eu visitava o Padre Mário Reis. Padre macho, diga-se logo. Morava na praça a trinta metros da minha casa, mas o ritual de visitá-lo exigia lanterna, capa nos ombros e circunspeção. Era somente lá, numa vitrola a manivela, que eu podia ouvir a Cavaleria Rusticana, os doirados pomos de Chopin, o descabaço wagneriano em tímpanos heróicos, o doce Liszt, coitado, roendo a danação dos altares.
Cadeiras confortáveis, semibreves e silêncio. O Padre só dizia: "Bethoven, Sinfonia Inacabada'". E nada mais havia que falar.
Quando não, na Rua do Coité, o bar do sinuca me fazia moleque. Na bola sete, depois de uma Jurubeba com mel, todo mundo botava dez'tões. Era um prazer derrubar cabra frouxo no cataplá das caçapas. Na escolha certa dos tacos o campeão ranhendo o giz em grave silêncio. Grave como um Aquiles atento ao fragor da batalha - o pano verde, enseadas de Tróia - ele punha sobre a cruzeta o taco maior e pá! A bola branca saia exata inventando geometrias, trisca aqui, tabela boba fazendo que não, depois cumpria o toque sutil: bola preta, cataplá na caçapa.
A luz chegou depois de décadas de desesperança. Chegou com pompas de papel crepom decorando os postes, no estardalhaço dos dobrados. Lá estava a orgulhosa Lira Sant'Ana toda engomada, com seus contrabaixos encantando os meninos. O regente, Seu Mestre Raimundo, metido em terno azul de linho belga, esfogueava. Era desses brancos sardentos de bochechas róseas, cabelo de milho, dedinhos miúdos. A gravata grená, torta clave de ré apertando o gogó, inda hoje me fascina. Como podia aquele pequeno homem organizar tanto som, de tal modo encantador? É que Seu Raimundo era belo, regendo o patriotismo da cidade, qual cisne branco em noite de luz elétrica.
Mas não foi muito boa aquela luz de Paulo Afonso. Quando a festa acabou veio a praga dos baratões. Cada uma meu irmão! Invadiram a cidade. Não se tomava fresca na calçada, não se abria um baú, não se dormia sem uma barata nos lençóis. Praga da peste! Elas chegavam por volta das seis, ritualísticas em volta das lâmpadas, depois davam a louca no mundo.
Tivemos grandes problemas.
Um eu conto: lá vem Dona Candhão, visinha minha na Praça da Matriz, espavorida a xingar meio mundo de cão. Um intrépido baratão achara por bem se alojar no seu imenso califon, o danado arranhando luxúrias no seu túrgido e imaculado peitão. Dona Candhão gritava: "A fia do cabrunco tá roendo minhas partes!" E chocalhava aflita os berloques de ouro 14 (pra conta de três), pendurados na cordilheira dos seios.
Eu fui lá e os tirei iluminado pela luz de Paulo Afonso.
Amaral Cavalcante